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domingo, 25 de junho de 2017

Série de estudos "Cristianismo e Liberalismo" - 4ª parte


por:
José Augusto de Oliveira Maia
25.06.2017


A QUESTÃO DA DOUTRINA

Dando continuidade ao estudo do livro "Cristianismo e Liberalismo"(*), encerramos o último estudo (3ª parte) com o autor preocupando-se em resgatar os verdadeiros princípios e valores do cristianismo e seu fundamento, como forma de reconduzir as pessoas à Graça de Deus; assim, voltamo-nos agora para o fundamento doutrinário da fé cristã.

A tentativa sistemática de rejeição à doutrina

No início do século XX, época em que publicou seu livro, Machen constatava que a abertura de espaço ao Liberalismo Teológico (LT) e seus ensinos pelos seminários estendeu-se às Igrejas, tornando a fidelidade à Verdade ainda mais necessária; esta necessidade fazia-se ainda maior pelo fato de que enquanto os professores divulgavam livremente seus ataques às doutrinas cristãs no ambiente acadêmico, dentro das igrejas mantinham as aparências, divulgando os ensinos do LT de forma sutil.

O sutil repúdio à preocupação com doutrina manifestava-se da seguinte forma, segundo Machen: "De forma geral, encontramos uma objeção: 'O ensino não é importante, portanto, a exposição do ensino do Liberalismo e do Cristianismo não deve provocar nenhum interesse, hoje em dia; crenças são meras expressões mutáveis de uma experiência cristã unitária, e se elas são tidas como maneiras de expressar essas experiências, então, são todas igualmente boas. Assim, o ensino do Liberalismo pode estar o mais longe possível do ensino do Cristianismo, e no fim, ambos ainda serem considerados a mesma coisa.'." (página 22).

Dessa forma, a indiferença acerca da importância da doutrina penetrava o ambiente eclesiástico e minava o ensino da Palavra de Deus; no entanto, a rejeição das doutrinas cristãs fundamentais vinha acompanhada da firme adesão a doutrinas diametralmente opostas (ex.: paternidade universal de Deus e a irmandade universal de todos os Homens); no entanto, de acordo com o conceito cristão, a crença não é uma simples expressão de uma experiência, e sim a definição de fatos sobre os quais a experiência é baseada.

Nosso autor também denuncia como falsa a afirmação de que o cristianismo não é um conjunto de doutrinas, e sim um estilo de vida; a fé cristã é um fenômeno histórico baseado em fatos reais, passíveis de pesquisa histórica, sobre os quais os fundadores do Cristianismo estabeleceram seus ensinamentos, devidamente documentados, que compõem seu corpo doutrinário; as epístolas de Paulo registram de forma clara as informações históricas que estão na base do Cristianismo, e demonstram de forma evidente que, mais do que um estilo de vida, ou um programa de deveres, a vida cristã baseia-se em um relato de fatos, isto é, em uma doutrina. 

A definição de doutrina no cristianismo

Ao tempo da Igreja Primitiva, a preocupação com doutrina era fundamental entre os apóstolos; se, por um lado, Paulo aceitava tolerantemente aqueles que anunciavam o Evangelho por uma motivação incorreta (Filipenses 1:12 - 18), também condenava de forma enfática aqueles que ensinaram aos gálatas um falso evangelho (Gálatas 1:9); "Ele estava convencido da verdade objetiva da mensagem do Evangelho, e devoção a essa verdade era a grande paixão de sua vida. Cristianismo para Paulo não era somente um estilo de vida, mas também uma doutrina, que obviamente veio primeiro." (páginas 25, 26).

"De vez em quando, o pregador liberal moderno procura produzir um impressão oposta, citando palavras de Paulo fora de seu contexto, e interpretando-as de uma maneira totalmente diferente do sentido original. A questão é que é difícil ignorar Paulo. O liberal moderno deseja produzir nas mentes cristãs simples, e em sua própria mente, uma impressão de que há algum tipo de continuidade entre o Liberalismo moderno e o pensamento e vida do grande apóstolo. Mas a impressão é totalmente enganosa. Paulo não estava apenas interessado nos princípios éticos de Jesus; não estava somente interessado nos princípios gerais da religião ou da ética. Pelo contrário, estava interessado na obra redentora de Cristo e em seus efeitos sobre nós." (páginas 27, 28).

Um outro perigo para o qual Machen alerta é a tentativa dos liberais de separar Paulo do Cristianismo primitivo, alegando que ele havia tentado introduzir "um princípio absolutamente novo no movimento cristão, ou mesmo que foi o fundador de uma nova religião" (página 28); nosso autor afirma que essas tentativas fracassaram, diante da unidade existente entre seus ensinos e os dos primeiros apóstolos, como fica evidente em I Coríntios 15:3 - 7Gálatas 2:7 - 9II Pedro 3:14 - 16. O ensino de Paulo e da Igreja Primitiva não se baseava em uma paternidade universal de Deus e na irmandade universal dos Homens, ou em uma simples admiração do caráter de Jesus; "'Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; e foi sepultado; e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras'; desde o início, o Evangelho cristão, como implica o nome 'Evangelho' ou 'boas novas', consiste em algo que aconteceu. E desde o início, o significado do que aconteceu foi estabelecido, e quando o significado foi estabelecido, surgiu a doutrina cristã. 'Cristo morreu' - isso é uma referência histórica; 'Cristo morreu pelos nossos pecados' - isso é uma doutrina. Sem esses dois elementos, unidos de uma maneira indissolúvel, não existe Cristianismo." (páginas 28, 29).

No entanto, a mensagem do Evangelho vai além da morte de Cristo; sem dúvida, Sua morte teria sobre Seus discípulos um efeito devastador, dada a grande esperança que três anos de convívio teriam inspirado neles; porém, poucos dias após a crucificação algo aconteceu que mudaria a vida deles de forma radical e permanente; "A grande arma, com a qual os discípulos de Jesus viriam a conquistar o mundo, não era uma mera compreensão de princípios eternos, mas uma mensagem histórica, um relato de algo que havia acontecido recentemente: a mensagem 'Ele ressuscitou'." (página 30).

A associação da ressurreição de Jesus com os eventos que marcaram Sua morte e com toda Sua vida agora tem um novo sentido; "A Igreja Primitiva não estava somente interessada naquilo que Jesus falou, mas primeiramente naquilo que Jesus fez. O mundo seria redimido pela proclamação de um evento; e com o evento, seguia o seu significado; 
e o estabelecimento do evento, com o seu significado, era uma doutrina. Esses dois elementos estavam sempre juntos na mensagem cristã. A narração dos fatos é um fator histórico; a narração dos fatos com o seus significados é doutrina. 'Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado' - isso é história. 'Ele me amou e se entregou por mim' - isso é doutrina. Assim era o Cristianismo da Igreja Primitiva." (página 30).

A Igreja Primitiva baseava então seu ensino e sua pregação em um evento e na proclamação de seu significado; isto não é diferente do que Jesus fazia, quando pregava: "Arrependam-se, pois o Reino de Deus está próximo!" (
Marcos 1:15); Jesus proclamava a vinda do Reino, isto é, um evento futuro; a única diferença entre a pregação de Jesus e a da Igreja era que, para Ele, o evento era futuro, enquanto para os Seus discípulos, era um evento que, em parte, já havia acontecido; no entanto, tanto um quanto outro baseavam-se na ocorrência de um evento. 

"O que desejamos observar é que Jesus, certamente, não se limitou ao anúncio de princípios morais permanentes; ele proclamou um evento vindouro, e não o fez sem dar alguma explicação sobre seu significado. Mas, quando ele deu essa explicação, não importa quão breve a explicação tenha sido, ele estava ultrapassando a linha que separa uma religião sem dogmas, ou mesmo uma religião dogmática que ensine princípios eternos, de uma que está enraizada no significado de fatos históricos específicos; ele estava estabelecendo um grande abismo entre si e o Liberalismo filosófico moderno que incorretamente se identifica com seu nome." (página 33).

A autoridade divina de Cristo

Uma outra maneira como Jesus fundamentava seu ensino está na proclamação de si mesmo como o Messias; embora esta afirmação de Jesus sobre si mesmo seja contestada pelo L. T., tal contestação não faz sentido, uma vez que os discípulos mantiveram esta proclamação a partir da constatação de Sua ressurreição; é no Sermão do Monte que temos o melhor exemplo disto, quando Jesus repetidamente diz: "Porém, eu digo a vocês."; esta não é a palavra de um simples profeta ou de um mestre apenas, mas de alguém que legisla com sua própria autoridade sobre o Reino de Deus.

Outro exemplo da proclamação de Jesus como Messias encontramos em 
Mateus 7:21 - 23; contra a apresentação dos falsos profetas dos sinais e maravilhas por eles realizados "em nome de Jesus", a condenação de Cristo é clara: "Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal."; a condenação deles depende da palavra proferida por Cristo, coisa que nenhum profeta ou mestre poderia reivindicar, mas apenas o Messias.

"Quando Jesus disse: 'Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei.', ele não estava falando como um filósofo que chama seus pupilos à sua escola, mas sim como aquele que possuía ricos depósitos da graça divina. Pelo menos isso os discípulos conheciam. Eles sabiam, em seus corações, que não tinham o direito de estar no Reino; sabiam que só Jesus podia conquistar sua entrada ali. Não tinham pleno conhecimento de como Jesus podia fazê-los filhos de Deus, mas sabiam que ele, e somente ele, era capaz de fazê-lo. Nesta confiança estava a esperança de toda a teologia dos credos cristãos." (página 38).

Respondendo à rejeição doutrinária

Contra a afirmação de que a Regra de Ouro do Sermão do Monte é tudo de que precisamos, Machen opõe a afirmação de que, se nem a Lei Mosaica pudemos cumprir, como atenderíamos aos requisitos de justiça expostos por Jesus no Sermão do Monte, requisitos que exigem um coração transformado, um novo nascimento? Tal padrão de justiça leva o pecador condenado ao pé da cruz.

No entanto, os teólogos liberais rejeitam a ênfase doutrinária advogando um retorno à fé simples dos homens da Galileia na pessoa de Jesus; mas a questão é que a pessoa de Cristo não está mais ao alcance de nossos olhos e ouvidos como estava aos dos discípulos; "Não estamos mais revivendo as vidas de Pedro, Tiago e João; estamos vivendo as nossas próprias vidas de novo, com nossos próprios problemas, nossa própria miséria e nosso próprio pecado. E ainda estamos procurando nosso próprio Salvador." (página 40).

E não foi a simples memória da pessoa de Jesus que arrancou os discípulos do medo, mas a mensagem de Sua ressurreição deu a eles e a nós um Salvador vivo! No entanto, ao sabermos que Jesus está vivo, como podemos receber seus benefícios, assim como receberam aqueles que estavam com Ele na Galileia? Esta é justamente a mensagem do Evangelho; ao sabermos do que Jesus fazia, descobrimos não somente que Jesus salvou aos outros, mas também salvou a nós. "Ele fez algo ainda maior por nós - ele morreu. Nossa terrível culpa, a condenação da lei de Deus, foi apagada por um ato da graça de Deus. Essa é a mensagem que traz Jesus para perto de nós, tornando-o mais do que somente um Salvador para as pessoas da Galileia de muito tempo atrás, mas o meu e o seu Salvador." (página 42). Assim, é o relato da morte e ressurreição de Jesus, junto com o seu significado, que "contém a profunda teologia da redenção por meio do sangue de Cristo. A doutrina cristã está nas próprias raízes da fé." (página 42).

O ataque do L. T., que parece concentrar-se nas sutis controvérsias teológicas dos séculos XVI e XVII, após a Reforma, parece sem grandes consequências aos olhos dos membros das igrejas; mas aí está um perigoso engano: "aquilo que se questiona na teologia da igreja também está na essência do Novo Testamento. No fim, o ataque não é ao século XVII, mas contra a Bíblia e ao próprio Jesus." (página 43). 

O ataque ao desenvolvimento teológico de 20 séculos de História Cristã é tão perigoso quanto ao ataque, em qualquer ramo da ciência, ao trabalho e às descobertas de gerações passadas; assim como não é possível fazer ciência hoje rejeitando o conhecimento acumulado ao longo dos séculos até o presente, da mesma forma é impossível pregarmos um Evangelho digno deste nome se rejeitarmos o longo e difícil trabalho teológico a longo dos séculos construído sobre as páginas do Novo Testamento; "o pregador liberal está rejeitando o homoousion do Credo de Niceia, assim como as simples palavras de Paulo: 'Que me amou e se entregou por mim'. Pois a palavra 'doutrina' não é usada da maneira mais específica, mas da maneira mais abrangente. O pregador liberal está, na verdade, rejeitando todo o fundamento do Cristianismo, que é uma religião fundamentada em fatos, e não em aspirações. Aqui se encontra a diferença real entre Liberalismo e Cristianismo: Liberalismo é totalmente imperativo, enquanto que o Cristianismo começa com um indicativo; o Liberalismo apela ao arbítrio do homem, enquanto o Cristianismo, em primeiro lugar, anuncia o ato gracioso de Deus." (página 44). 

Assim, em primeiro lugar, Machen afirma que é a proclamação das verdades bíblicas sobre Cristo que conduz o Homem à salvação e à libertação do pecado; meras considerações sobre princípios gerais sobre como as pessoas devem viver não fazem isso; o testemunho do Evangelho, de vidas realmente transformadas por esta mensagem, continua causando impacto como causava na sociedade palestina há 2.000 anos.

Em segundo lugar, Machen defende que é possível manter a comunhão entre cristãos, apesar de pequenas diferenças de opinião sobre pontos secundários de doutrina; assim, parte dos problemas dentro da igreja evangélica em geral não tinha sua origem em divergências doutrinárias entre cristãos, e sim no embate entre a comunidade cristã em geral e aqueles que negam o cristianismo com base no naturalismo.

"(...) o serviço cristão consiste, em primeiro lugar, na propagação de uma mensagem, e a comunhão cristã, especificamente, só existe entre aqueles para quem a mensagem tornou-se a própria base de toda a vida." (página 49).

Dessa forma, Machen propõe um exame dos ensinos do L.T., que comparados com as doutrinas fundamentais cristãs, revelará a oposição aberta entre os dois ensinos.

(*) MACHEN, John Greshan "Cristianismo e Liberalismo" - Shedd Publicações - tradução Caio Cesar Dias Peres - 1ª edição - 2012

https://www.clubedeautores.com.br/book/165560--Para_voce_que_AINDA_nao_conhece_a_Biblia#.WR99pOsrLIU